Claudia de Lucca Mano*
No final de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) avançava no julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, ao julgar o Recurso Especial de repercussão geral que avalia a constitucionalidade do artigo 28, da Lei 11343/2006. A maioria dos ministros se manifestaram favorável à tese de que não é crime portar entorpecentes para consumo pessoal, defendendo a fixação de critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes, especialmente no que se refere as pequenas quantidades de cannabis. O julgamento foi paralisado por um pedido de vistas de André Mendonça, após o voto contrário do recém-empossado Cristiano Zanin.
Em reação ao avanço do debate pela descriminalização de usuários, em setembro, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD MG), formalizou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023 que propõe a inclusão de um novo item no artigo 5º, que trata de direitos e garantias fundamentais, dizendo que a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
A PEC representa um mandato de criminalização, ou seja, ordens constitucionais expressas para que determinadas condutas sejam consideradas crimes. Como exemplos, há previsão constitucional para o crime de racismo, art. 5º XLII, e o próprio tráfico ilícito de entorpecentes considerado hediondo, art. 5º XLIII.
Não é por acaso que destacamos esses dois exemplos. A lei de drogas, aprovada pelo Congresso Nacional em 2006, passou a prever penas alternativas às de prisão para usuários, como medidas socioeducativas, advertência ou prestação de serviços à comunidade. E aumentou a pena mínima para tráfico, de 03 para 05 anos.
No entanto, na ausência de critérios objetivos (como quantidades) para diferenciar usuários de traficantes, o resultado foi um aumento de encarceramento em massa, especialmente de jovens, negros, com baixa escolaridade ou periféricos, inclusive muitas mulheres, presos por tráfico de drogas. Desde a criação da Lei 11.343, de 2006, a proporção de presos por tráfico saltou de 15,5% em 2007 para 25,5% em 2013, segundo o relatório da ABJ (Associação Brasileira de Jurimetria), usado como base do voto de Alexandre de Moraes no julgamento em curso no Supremo.
Assim, a política de enfrentamento às drogas atual é falha porque continua sendo aplicada por agentes públicos que julgam os presos pela cor da pele, pelo endereço e pelo nível social. Isso é o que chamam de racismo estrutural, aquele que está arraigado na sociedade brasileira de forma indelével, que aprofunda desigualdades sociais, através da injustiça institucional do Estado.
À luz das reações sociais, o projeto ganhou nova roupagem. Recentemente, o senador Efraim Filho (União PB) leu seu parecer, como relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) propondo uma pequena alteração no texto, assim revisado “LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes ou drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre o traficante e o usuário, aplicáveis a este último penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.
Mas isso já é o que determina a Lei de 2006. E a constitucionalidade do artigo 28 é justamente o que está em revisão pelo STF, desde 2011, cuja maioria agora se inclina para a determinação de critérios objetivos com quantidades balizadoras de cannabis ao menos, para diferenciar usuário de traficante, reforçando a ideia de que o porte para uso não deve ser considerado crime.
Nos parece que seria desnecessária uma PEC para dizer o que já diz a lei de 2006, sendo certo que a inclusão do mandato constitucional de criminalização do porte poderia esvaziar a eficácia do julgamento em curso no STF (RE 635659 Tema de Repercussão Geral 506). E também nos parece que se trata de mais um capítulo de enfrentamento do Legislativo e Judiciário, que se movimenta para conter os poderes do Supremo, a exemplo da recente medida que pretende restringir as decisões individuais de ministros da Corte.
Melhor faria o Congresso Nacional se analisasse, de uma vez por todas, o PL 399, que desde 2015 está em deliberação, e que regulamentará a cannabis medicinal, desde o plantio, até a industrialização e manipulação em farmácias. O projeto está parado desde 2021, quando foi obstruído por conservadores através de recurso, ainda não julgado pela Câmara dos Deputados, para que o PL possa seguir ao Senado Federal.
*Claudia de Lucca Mano é advogada, sócia fundadora da banca De Lucca Mano Consultoria, consultora empresarial atuando desde 1994 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios
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