Claudia de Lucca Mano*
Nos últimos meses, alguns medicamentos ficaram “famosos” ao se tornarem extremamente populares no país. Como exemplos, temos o Ozempic (semaglutida), concebido para tratamento de diabetes, mas que tem sido usado para acelerar a perda de peso; e o Venvanse (dimesilato de dexanfetamina), que é indicado para pessoas com TDAH, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, mas que tem sido utilizado por indivíduos saudáveis, como estudantes e executivos, para melhoria da concentração e foco em tarefas cotidianas.
Trata-se do uso off label de medicamentos, que não é proibido no Brasil. Médicos costumam prescrever certas drogas pelos efeitos secundários que promovem, que são diferentes dos que constam em bula. O problema ocorre quando a venda é feita sem o suporte da prescrição de um profissional habilitado.
Medicamentos com tarja vermelha somente podem ser vendidos sob prescrição médica. No entanto, não é obrigatório às farmácias fazer a retenção de segunda via para escrituração das receitas, o que somente ocorre com antibióticos, entorpecentes e psicotrópicos listados pela Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa).
A não exigência de retenção de receita ocasiona uma das maiores distorções da lógica regulatória do varejo de medicamentos: qualquer pessoa que solicite remédios de tarja vermelha no balcão da farmácia conseguirá comprá-lo sem apresentar a prescrição médica.
Este é o caso do Ozempic. Para as drogas que precisam de retenção, o mercado ilegal e paralelo de receitas responde pelo desvio, para fornecimento a pessoas que não tem indicação médica.
Nos balcões das drogarias, atendentes afirmam com convicção que medicamentos sem retenção de receitas são de venda livre, o que absolutamente não procede. Mesmo assim, há anos essas vendas ocorrem sem qualquer restrição e sem que a fiscalização tenha mecanismos para identificar as vendas irregulares.
Como consequência, temos a falta de medicamentos no mercado, prejudicando pacientes que realmente precisam. Além disso, pessoas que não possuem indicação e acompanhamento médico podem sofrer complicações e efeitos adversos graves ocasionados pelo seu uso.
Por que não vemos uma fiscalização mais efetiva por parte da vigilância sanitária para coibir esses abusos?
Nas farmácias de manipulação, toda receita precisa ser registrada em sistema (Livro de Receituário), com nome e registro profissional do prescritor, mesmo que não seja obrigatória sua retenção. A fiscalização para esses estabelecimentos é rígida, mas o mesmo não ocorre com as drogarias.
Outro exemplo do tratamento regulatório desigual: as farmácias de manipulação são proibidas até mesmo de anunciar através da internet medicamentos isentos de prescrição, além de cosméticos e suplementos que podem perfeitamente ser fornecidos a qualquer pessoa interessada. Já as drogarias colocam esses produtos à disposição de consumidores, no balcão das lojas ou em meios virtuais, mesmo quando há a exigência de prescrição médica para aquisição.
A legislação sanitária traz critérios bastante objetivos para saber se um medicamento ou um produto para saúde é classificado como isento de prescrição médica.
Dentro deste cenário fica uma questão: a quem interessa que o medicamento industrializado tarjado possa ser vendido livremente sem qualquer controle?
A indústria farmacêutica não se opõe a esta prática, mesmo quando os remédios ficam em falta no varejo. Obviamente, os recordes de vendas são vantajosos para o segmento. Quando os lotes são falsificados, a indústria notifica a Anvisa, que age para divulgar os lotes falsos.
Portanto, é necessário que se retome o debate sobre mudanças importantes na regulação e fiscalização para evitar essa distorção do mercado e também a venda desenfreada de medicamentos que podem colocar em risco a saúde da população.
*Claudia de Lucca Mano é advogada, consultora empresarial, especialista na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.