Enio De Biasi*
Como acontecia num passado longínquo, o que não mais esperávamos nos tempos modernos, na “calada da noite”, no último dia útil do ano (nem tão útil assim, dado que não há expediente bancário), o Governo de plantão edita uma Medida Provisória que, basicamente:
Revoga, na prática, a Lei que desonera a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento de 17 setores da economia;
Revoga benefícios fiscais definidos em Lei para as empresas do setor de eventos;
Revoga a alíquota reduzida da contribuição previdenciária para municípios com até 156 mil habitantes;
Estabelece limite mensal de compensação para os créditos dos contribuintes decorrentes de decisão judicial transitada em julgado.
Para além da surpresa da publicação da MP 1.202 no dia 29 de dezembro, que por si só é razão de questionamento, dada a falta de previsibilidade e de transparência, a edição dessa MP é mais um instrumento para a declarada intenção do governo de aumentar a arrecadação federal, com o objetivo de buscar o equilíbrio das contas públicas a partir de 2024.
Essa é a tônica do governo eleito em 2023, por baixíssima maioria (e em segundo turno): aumentar as despesas e “correr atrás” de novas receitas, mesmo que isso represente afronta ao direito adquirido e ataque a outro Poder da República, valendo-se de frágeis e questionáveis argumentos.
As revogações da desoneração das contribuições previdenciárias para os 17 setores e da sua redução para os municípios de até 156 mil habitantes, é uma afronta explícita e direta ao Poder Legislativo, que derrubou o veto presidencial para o projeto que prorrogava esses dispositivos até 31 de dezembro de 2027.
Até parece “birra de criança”, se lembrarmos que a Lei 14.784 foi promulgada pelo Presidente do Senado Federal no dia 27 de dezembro!
É ou não uma afronta ao Poder Legislativo?
Quanto ao limite mensal para compensação dos créditos judiciais transitados em julgado, que, diga-se de passagem, não foi estabelecido pela MP 1.202, deixando sua dosimetria à discricionariedade do Ministro da Fazenda, duas frases me vêm à mente:
“Às favas com os escrúpulos”, na sua versão reduzida, dita pelo ex-ministro Jarbas Passarinho, em reunião do AI-5, em 1968;
“No Brasil até o passado é incerto”, atribuída ao ex-ministro Pedro Malan – há quem diga que o primeiro a cunhar a expressão foi o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola. O certo é que ela se consolidou como uma frase antológica sobre o Brasil.
O argumento do Ministro Fernando Haddad, apresentada em entrevista coletiva, foi de que a medida visa regular as compensações, uma vez que o governo não tem como administrar com transparência os valores que serão compensados.
Além de frágil, o argumento é mentiroso e ilegal.
Frágil e mentiroso porque não se sustenta, para quem conhece o processo administrativo de compensação. O contribuinte, quando tem o reconhecimento de um crédito tributário em sentença transitada em julgado, é obrigado a transmitir à Receita Federal um “Pedido de Habilitação”, em que apresenta todos os documentos que comprovam seu direito e somente após ter esse pedido deferido é que o contribuinte pode iniciar as compensações.
O valor total do crédito é informado na primeira compensação realizada, na chamada D/COMP (Declaração de Compensação).
Tudo feito de modo formal e transparente, o que permite à autoridade tributária, não só tomar conhecimento do crédito, como promover a sua administração e lhe concede uma previsibilidade das compensações de cada um dos contribuintes.
O argumento também é ilegal, pois, além de ferir um direito adquirido e a segurança jurídica, ao alterar o regime de compensação já iniciado com a habilitação do crédito por parte da Receita Federal (a MP 1.202 não se restringe aos novos processos de compensação), interfere, frontalmente, numa decisão judicial transitada em julgado sob a égide de um regime que permitia a compensação sem qualquer trava ou limitação.
Não bastasse o STF transformar o passado em incerto, agora o Executivo tenta fazer o mesmo.
Tom Jobim cunhou uma frase que se transformou numa máxima:
“O Brasil não é para principiantes.”
*Enio de Biasi é diretor da Elebece Consultoria Tributária
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