É lugar comum apontar para as novas tecnologias como alienantes, sinalizadoras de uma decadência humana e até destruidoras de um suposto passado no qual as relações humanas eram melhores e mais, digamos, “humanas”. Repete-se, assim, que os celulares estão fazendo das pessoas verdadeiros zumbis, que não se conversa mais à mesa do almoço, que vivemos imersos em um mudo virtual, desconectados da realidade e das pessoas de carne e osso.
Saudosismo? Resistência à mudança? Talvez. Em alguma medida, certamente. Porém, é fato que assistimos a mudanças significativas nas nossas relações com o tempo, com o espaço, o pensamento e a linguagem. E também nas relações entre as pessoas. O espaço de intimidade tem se reduzido consideravelmente, ao mesmo tempo que o anonimato tem se transformado. A democratização da palavra e das opiniões tem se apresentado como uma questão que não apenas faz com que a palavra circule, que seja tomada por aqueles que não lhe tinham direito, pelo menos não em público; mas traz em seu bojo também a pulverização dos discursos canônicos, relativizando referenciais que nos balizavam como corpo social, impondo desafios ainda incomensuráveis. As opiniões se equivalem às autoridades, às vezes as sobrepondo, e o Estado, a ciência, o mestre vêm se desfalecendo. As imagens parecem se sobrepor aos textos mais longos, e as configurações das notícias nos jornais ou tabloides o atestam, bem como os “memes”. Uma diminuição do espaçamento simbólico, da palavra como cimento de nossa arquitetura.
Os smartphones são peças-chave nessa transformação, com seus designs sedutores, abarrotados de funcionalidades impensáveis, e tudo na palma da mão. Tornaram-se um membro quase indispensável de nosso próprio corpo, como uma extensão deste. Seus softwares e aplicativos já dispõem de muito mais informações sobre nós do que nós mesmos, e a inteligência artificial vem instaurar um capítulo muito promissor e incerto nessa nossa história recente.
Como todas as ferramentas que os humanos já criaram, os smartphones e suas extensões funcionais engendram possibilidades extraordinariamente interessantes, como também escancaram faces sombrias de nossas paixões mais recônditas; aliás, as amplificam. Conexões instantâneas de distâncias antes intransponíveis e tele consultas se combinam com a disseminação de informações falsas na velocidade da luz e com efeitos deletérios das telas em nossos olhos e cérebro.
Entre o eu e a realidade, a internet se apresenta como um espaço intermediário, transicional, em que parte de nossa realidade é projetada e retroalimentada por algoritmos, ao mesmo tempo que nos possibilita uma imersão em horizontes jamais imaginados. Entre a escolha e a ação, basta um clique, sem que se precise dar um passo, e nossos impulsos e desejos são tragados para além de nós. Tem-se, assim, uma gratificação quase que imediata, o que confere ao uso desses aparelhos, muitas vezes, seu padrão abusivo e viciante. Os sujeitos ficam relegados aos seus próprios excessos e intensidades, sem reguladores simbólicos que apontem para uma unificação imaginada. O desejo já não mais é postergado para um mais além, no futuro, em que o sujeito deva se comprometer no presente para alcançá-lo. E a satisfação imediata, sempre aquém, insiste em repetir-se, sempre mais, ainda.
No texto clássico sobre o Mal-estar na civilização, Freud sublinha como uma das fontes da angústia humana as relações entre as pessoas e, nesse quesito, a ferramenta aqui não se faz menos prestativa. Os aplicativos de relacionamentos proliferam, os “dates” são muito menos trabalhosos, mais rápidos, e também mais voláteis. Não obstante, nunca se termina nada, porque o acesso imediato e os infindáveis links se apresentam com páginas infinitas, basta rolar para baixo. Nossa atenção flutua e parece que não pairamos em lugar algum.
Contudo, a virtualidade faz parte de nossa “essência”, pois o ser humano não se relaciona efetivamente com as coisas, pelo menos não tal como pensa. Antes, se relaciona com aquilo que as coisas lhe parecem ser, com o significado que atribui a elas, com a forma que elas o afetam.
Ao que parece, estamos ainda em vias de se haver com o mal-estar inerente à nossa organização civilizada, bem como os mediadores que inventamos para nos satisfazer, porém, com intensidade nunca antes vista.
*Cassio Azevedo é psicólogo e psicanalista. Professor do Centro Universitário Internacional Uninter
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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