A atuação das Organizações da Sociedade Civil no Brasil, especialmente das filantrópicas, resultou em mais de R$ 133 bilhões entregues em serviços aos setores da saúde e da educação no ano passado. Este montante é apenas parte de um amplo levantamento feito em 2022 pelo Movimento por uma Cultura de Doação, coordenado pela Sitawi Finanças do Bem. Os dados confirmam: as entidades têm papel de protagonismo no acesso de milhões de brasileiros a serviços básicos ofertados por hospitais, escolas e assistência social.
Entretanto, chama a atenção a posição do governo federal, órgão que mais se beneficia da filantropia, em relação ao papel das entidades. Isso porque sobreviver tornou-se um desafio ainda mais difícil desde a Lei Complementar 187/2021, que enrijece as condições para que as instituições sem fins lucrativos gozem das imunidades tributárias. Diferentemente dos incentivos fiscais, a imunidade não é facultativo ao Estado, mas garantida pela Constituição Federal, conforme estabelecem os artigos 150 e 195
A manobra do governo em “transformar” a Lei 12.101 em lei complementar vem sendo tratada por juristas e entidades de defesa ao terceiro setor como uma afronta ao direito. “É um desrespeito escandaloso a preceito constitucional e um verdadeiro massacre para às Organizações da Sociedade Civil, que atendem a quase totalidade das ações públicas nas áreas de saúde, da educação e da assistência social”, afirma o advogado Tomáz de Aquino Resende, cujo escritório é especializado em assistência jurídica voltada para entidades sem fins lucrativos.
“Se a malfadada lei”, completa o jurista, “por si só uma verdadeira balburdia, mal processada e mal feita, vem agora o decreto regulamentador D11791 para complicar mais ainda a situação. São tantos empecilhos e requisitos esdrúxulos que nada menos que 80% delas não conseguirão atender às novas e inconstitucionais exigências governamentais”, critica Tomáz de Aquino.
Ele argumenta que a lei é um obstáculo que por si só representa uma contradição à interpretação jurídica que garante proteção às entidades com fins sociais. “Isto significa que a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal não têm a prerrogativa de estabelecer sobre elas impostos nem contribuições sociais. Por outro lado, o Art. 146, também da CF, dita que a regulamentação dessas garantias deve ser feita por lei complementar”, afirma.
Até a Constituição de 1988, tal legislação não existia. “O Código Tributário Nacional é que se tornou a Lei Complementar depois da Constituição, mas isso levou a uma grande discussão sobre os conflitos entre imunidade e isenção tributária”, pontua.
A diferença entre ambas, orienta, é que a imunidade veda na própria Constituição da República (CF88) aos entes federados, a imposição de tributos nas OSCs de Educação, Saúde e Assistência Social. Já a isenção é uma concessão, um favor do poder público às organizações, e o tempo de isenção, a alíquota e as classes de beneficiários são estabelecidos pelo governo. “O conflito ocorre porque a Receita Federal passou a tratar os artigos 150 e 195 não como imunidade, mas como isenção. Isso já criou um cenário de discussões, mas que foi acalorado pela Lei Complementar 187, de dezembro de 2021, para atender ao Art. 146 da Constituição”, afirma Tomáz de Aquino.
“A forma como a lei foi instituída dificulta muito a manutenção das entidades filantrópicas. Essa lei pode prejudicar boa parte do terceiro setor. E isso é um problema enorme para o país, porque elas respondem por uma parcela considerável do atendimento público à educação, à saúde e à assistência social. Para se ter ideia, 78% dos atendimentos feitos através do SUS só são possíveis graças às entidades mantenedoras de hospitais e clínicas, que carregam o caráter filantrópico”, alerta.
Exigências da Lei Complementar
O advogado Tomáz de Aquino Rezende afirma que será difícil mensurar quantas entidades não-governamentais poderão deixar de renovar ou conseguir o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) pela dificuldade de atendimento às exigências da Lei Complementar 187/21, que cria indevidamente esta condição para o gozo da imunidade. “É o destinatário da norma regulando em seu favor a proibição constitucional de criar ou cobrar tributos, isso além de totalmente antijurídico, ofende mesmo à lógica antes do que ao direito”, ironiza.
Mas há pontos na lei que vêm sendo veementemente criticados por juristas vinculados a entidades com fins sociais, e que podem afastar o interesse pela renovação do documento. São os casos dos artigos do 9º ao 28º, que estabelecem condições de difícil ou mesmo impossível atendimento. No entendimento do advogado, é uma proposta de abolição do acesso das instituições do Terceiro Setor à garantia fundamental da imunidade. “A exigência de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), para o gozo das imunidades, é esdruxulo, inconstitucional e de extrema maldade. Basta ver que apenas 2% das quase 900 mil organizações conseguiram obter este título, que nada mais é do que um ato administrativo discricionário e ilegítimo”, protesta.
“O legislador constituinte , que é o povo, estabelece uma proibição aos governos. O legislador ordinário,ou seja, o destinatário da proibição, quer regular a proibição em seu favor por meio de decreto e portarias, impedindo a aplicação da norma maior”, complementa.
Ele prevê que, se se mantiver uma barreira quase intransponível para o atendimento aos requisitos exigidos pela lei, haverá consequências diretas nos serviços ofertados à população. “Isso pode tirar da saúde, da educação e da assistência social milhares de entidades que hoje se dedicam a oferecer serviços gratuitos a pessoas que estão à margem da sociedade. O trabalho do SUS, que hoje é reverenciado por muita gente e que tem reconhecimento mundial, funciona graças às entidades filantrópicas. Mas até quando elas vão se manter, diante da Lei 187?”, questiona o advogado.
ADI
A dúvida se converteu numa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.563), que foi impetrada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 14 de dezembro. A ação é movida por diferentes órgãos de apoio ao terceiro setor, como a Confederação Brasileira de Fundações (Cebraf), a Associação Nacional dos Procuradores e Promotores de Justiça de Fundações e Entidades de Interesse Social (Profis), a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) e assina também a petição o Presidente da Comissão de Direito do 3º Setor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional, André Carvalho
“Nossa sustentação ampara-se na defesa de que as garantias coletivas e individuais são cláusulas pétreas, ou seja, são indissolúveis e não podem ser revogadas. As entidades beneficiam milhões de pessoas que não têm acesso nem à educação nem à saúde nem à assistência social, mas elas só funcionam graças à imunidade tributária. Isto leva ao entendimento claro de que o direito à imunidade deve ser tratado como cláusula pétrea. É o que vamos mostrar ao STF”, declara Tomáz de Aquino Resende.
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