Acontece em São Paulo, no dia 11 de junho, a partir das 19h, no Tiro Liro Bar e Restaurante o lançamento do livro Trem do Atlântico, o romance de estreia do exímio contista David Oscar Vaz, que já publicou três volumes de contos: Resíduos (Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte), A Urna e Portas e Vãos. Este seu quarto título é o primeiro romance de sua laureada carreira e incrementa o recente acervo do gênero no catálogo da Editora Calêndula, o novo selo capitaneado pelo renomado poeta e experiente editor Wilbett Oliveira.
A obra foi vencedora, em 2009, do concurso Criar Lusofonia, que ofereceu, à guisa de prêmio, um inestimável incentivo à sua realização a partir de uma residência oferecida pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal, que propiciou a David uma temporada de imersão destinada à aprofundada pesquisa que se fez paralela ao aprofundamento do resgate de elementos biográficos do autor e concorreu para a escrita de uma obra autoficcional com forte acento memorialista, gênero temático tão caro à tradição literária portuguesa.
Da rica experiência vivida na residência literária, foram colecionados conteúdos, memórias, fatos, informações de ordem culturais: geográficas, históricas, sociais, políticas etc., num conjunto de inspirações que também abarcaram os refinamentos relativos ao emprego da prosódia e sintaxes lusas em contraste com as brasileiras, fator marcante na elaboração da linguagem. No decorrer do livro, ambas alternam-se com maestria ao passo que as narrativas vão e vem entre Portugal e Brasil, fazendo jus ao título que já antecipa e insinua o traslado não só dos enredos, dos costumes, das mentalidades como também, e talvez principalmente, das emoções que, nas duas pontas do itinerário, unem o passado e a tradição dos ancestrais ao destino dos descendentes, numa sensível narrativa com transatlânticas transposições das expectativas em realizações e também de alguns sonhos em decepções. Algo que sempre cunhou o perfil dos emigrantes de lá, aqui imigrantes. Cumpre-se assim, com valor assertivo, o intuito do prêmio auferido, que busca incentivar justamente a edificação dessa metafórica ferrovia a estreitar os laços da lusofonia para além do idioma que os une, mas considerando que os falantes da Língua Portuguesa comungam de uma mesma História, formadora de uma nação una feita de tantas Nações independentes.
O Trem do Atlântico parte de uma não estação: o primeiro registro do livro já põe o leitor a meditar acerca das origens desconhecidas, pois começa com reticências, o que faz supor que é uma história que se continua de outra. Mas qual outra? Saberá o leitor a seu respeito enquanto esta se desenrola? Tão logo embarcado nesta provocação de um simples sinal de pontuação, segue-se a afirmação que insinua o tom de toda a narrativa que se seguirá: “…e poria o coração de tal modo em cada frase, que ninguém suspeitaria de outra coisa.” Anuncia-se, com isso, ainda na plataforma de embarque, no justo momento da partida, uma narrativa indubitável, cuja verossimilhança e credibilidade repousarão sobre o movimento da emoção a conduzir a precisão da tessitura racional da própria narrativa! E é justamente o que se verá a partir da frase seguinte, já convertida em prosaica cena, até o término da envolvente viagem que o enredo proporcionará.
Como numa verdadeira viagem de trem entre épocas e espaços distintos, num vaivém de acontecimentos que findam por colocar nos trilhos os acontecimentos em linha, David Oscar Vaz alterna momentos e ambientes com a eficiência de um cicerone a conduzir o leitor aos monumentos fundantes da própria narrativa de que se encarrega de anunciar. De certos lugares a outros diferentes lugares, por tempos desdobrados em outros tempos, recua, dos meados do ano de 1989, primeiro em Campinas e São Paulo e, a seguir, no Mato Grosso, ao ano de 1963, em São Paulo; dali, retrocede mais dezoito anos, para 1955, em Felgueiras, pequeno povoado no norte de Portugal. Retorna, num átimo, aos anos sessenta e, de lá, imediatamente para os fins dos oitenta mais uma vez, mantendo o trem em constante movimento espaço-temporal num hábil movimento de recolho das disseminadas memórias de fatos reagrupadas para que se estruture o todo do enredo. Arquitetura impecável que repete e transcende esses cruzamentos e pontes espaço-temporais para a urdidura da trama que se abre e completa-se em diversas frentes de expectativa!
Um livro paradoxalmente fragmentado e coeso, salpicado de extenso acervo de frases pertinentes ao enredo, mostradas como paisagens fotografadas pela janela do comboio em movimento, que renderiam, em edição à parte, um volume de aforismos voltados à reflexão e ao entendimento do espírito humano, seja em aspectos antropológicos, como em “há em muito ser urbano a saudade de uma roça que só existe pela força do desejo, prova singela de que trazemos um paraíso inventado dentro de nós”; líricos, como em “assim foi o começo, banal e fascinante como são os começos”; existenciais, acerca do arbítrio ou de sua ausência, como em “enviesado é o caminho do destino”, “assim o destino atua, primeiro separa as famílias, depois os amigos” e “a calmaria é apenas a antecâmara da intempérie”; ou da fruição pela arte, como em “sorria comovida pelo nada que entendia [da leitura], como se só o fato de coisas como aquelas terem sido escritas fosse suficiente para provocar nela um grande prazer estético”; ou acerca das angústias frente ao irreparável, como em “a morte vasculha em nós territórios que o dia-a-dia não cobre”.
O mais consistente trato literário brota da refinada linguagem a explorar recursos de estilo como ferramentas de construção textual e não como enfeites a empertigá-lo. Assim, figuras da retórica poética surgem tão assimiladas pelo fluxo do relato que passam quase despercebidas como recursos de estilo, portanto sem afetação ou marcada pretensão poética em texto eminentemente narrativo, como se lê, por exemplo, na metáfora “estendeu o braço e sua mão era um pássaro com alimento no bico”; ou em aliterações que reforçam sentidos e fixam maior atenção ao detalhe da mensagem embutida, como em “porque o amor muda o mundo no miúdo”; ou ainda na construção do clima da cena com diverso recurso como a sinestesia: “os seus dedos roçaram de leve os dela. Sentiu o choque frio da massa derretendo na língua e a delicada resistência de um pedaço de abacaxi.”
Para quem gosta da boa Literatura e aprecia o diálogo que autores estabelecem com outros de seu tempo ou aos ligados à tradição, não faltam citações explícitas, como a Jorge Luis Borges ou a Fernando Pessoa, nem escamoteadas como a Guimarães Rosa ou Edgar Allan Poe e a uma miríade de outros escritores ou a suas obras, num exercício metalinguístico tão afeito ao que, por aqui, chamamos de pós-modernidade e, lá na Europa, chamam de neobarroco. Trem do Atlântico exibe ainda a forte prevalência de outros elementos caracterizadores dessa corrente artística: a perda do sujeito ou seu descentramento; a confluência de vozes multiplicadas no interior de um mesmo objeto artístico, muitas vezes manifestadas no discurso do narrador e dos personagens; a proliferação de significantes ou, em outras palavras, a obscuridade dos significados pela polissemia que torna os entendimentos ambi ou polivalentes; a desterritorialização temporal e espacial; a impossibilidade de fuga da contingência; flagrantes de alguns elementos estruturantes do enredo que se autodelatam pastiches – no caso desta obra, sobremaneira no penúltimo capítulo.
Nas estações derradeiras, o previsível desfecho do enredo torna-se tão surpreendente que é melhor não dar nenhuma pista a seu respeito. Que cada leitor desembarque no ponto de chegada com seu próprio pasmo, recolha a bagagem repleta do que se mobilizou de suas emoções suscitadas pela leitura e, senão com o coração em rebuliço, ao menos, e decerto, com “uma partida apitada de dentro da cabeça e uma sacudidela dos nervos e um ranger de osso na ida”, reflita sobre a terrível incontingência dos fatos a escaparem da premeditação da felicidade, esta doença que assola os viventes de nosso tempo! Restará, pois, disso não se duvidará, a convicção de ter estado, para cada feitio de leitor a um modo, no interior de um comboio a cruzar um campo em que a própria certeza esvai-se diante da emotividade gerada pela revelação da origem e essência de uma existência assim narrada por alguém que “poria o coração de tal modo em cada frase, que ninguém suspeitaria de outra coisa”… (E, agora, sou eu a colocar, provocativamente em invertida posição, as reticências no fim da frase, como sinal indicativo de uma história que não queria ver terminada).
Luiz Eduardo de Carvalho (editor e escritor)
SERVIÇO:
Trem do Atlântico – Editora Calêndula – 176 páginas
R$ 70,00 em pré-venda em www.editoracalendula.com.br
LANÇAMENTO:
11 de junho, a partir das 19 h
Tiro Liro bar e restaurante – Rua Cotoxó, 1.185 – Vila Pompeia – São Paulo – SP
David Oscar Vaz paulistano, formado em Letras pela Universidade de São Paulo – USP, em Português e Russo, é mestre em Teoria Literária pela mesma universidade. Dedica-se ao ensino, à produção textual, ficcional ou ensaística, e a outras atividades ligadas ao universo da escrita. Publicou Resíduos, pela Ateliê Editorial, com a qual recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA, na categoria “escritor revelação”; A Urna, também pela Ateliê Editorial e Portas e Vãos saiu pela Editora Urutau. Em 2009, ganhou o concurso “Criar Lusofonia” do Centro Nacional de Cultura de Portugal. O prêmio possibilitou-lhe viver em terras lusitanas para a produção do romance O Trem do Atlântico.
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LUIZ EDUARDO DE CARVALHO
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