A relação entre o descumprimento de obrigações tributárias e a responsabilização penal dos sócios de empresas tem ganhado relevância nos últimos anos, especialmente após a tipificação do não recolhimento contumaz do ICMS como crime de apropriação indébita.
Segundo Thiago Santana Lira, advogado e sócio da Barroso Advogados Associados, com MBA em Gestão Tributária, “é fundamental que haja uma análise criteriosa da conduta para evitar que o processo penal se torne um meio coercitivo de recolhimento tributário pelo Estado.”
Lira enfatiza que, embora seja inegável que a falta de pagamento de tributos prejudique diretamente a arrecadação estatal e, consequentemente, a prestação de serviços à sociedade, a criminalização dessa conduta deve ser abordada com cuidado.
“A tipificação do crime de apropriação indébita tributária se baseia na intenção do contribuinte de não cumprir com suas obrigações, ou seja, é necessário que haja dolo”, afirma. Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o Ministério Público a caracterizar o inadimplemento reiterado do ICMS como crime, com penas que variam de seis meses a dois anos de detenção, além de multas.
O princípio da verdade real e a presunção de inocência
Para Lira, a aplicação dessa norma tem sido muitas vezes desvirtuada. Ele defende que a presunção de inocência deve ser o pilar central em qualquer processo penal, e que o princípio da busca pela verdade real precisa nortear a análise dos fatos. “No âmbito do processo penal, o objetivo é chegar o mais próximo possível da verdade material, apurando a conduta do agente com base em todos os meios de prova possíveis, exceto aqueles obtidos por meios ilícitos”, explica.
Ele ainda ressalta que o simples inadimplemento de tributos, sem uma investigação minuciosa sobre as circunstâncias que levaram ao não pagamento, não pode ser suficiente para justificar uma acusação penal. “O artigo 156 do Código de Processo Penal permite que o juiz determine a produção de provas que busquem a verdade real. Nesse sentido, é essencial que se apure o dolo, o grau de lesividade e as circunstâncias que envolvem o contribuinte antes de se avançar para uma possível condenação criminal”, observa.
Outro ponto que Lira levanta é a aplicação da teoria do domínio do fato, que costuma ser utilizada em casos de crimes econômicos para responsabilizar sócios e gestores que não participaram diretamente da conduta ilícita, mas que tinham controle sobre a empresa.
“Embora a teoria do domínio do fato seja uma ferramenta importante para identificar quem tem o controle sobre a conduta delituosa, é perigoso aplicá-la indiscriminadamente. Não se pode presumir que, pelo simples fato de alguém ocupar uma posição de liderança na empresa, essa pessoa é automaticamente responsável pelo ilícito”, argumenta Lira.
Ele alerta que essa interpretação pode levar a injustiças, especialmente em casos onde os gestores ou sócios não tinham conhecimento ou envolvimento direto no descumprimento das obrigações tributárias. “É preciso que haja uma ligação clara entre a conduta do gestor e o resultado lesivo, caso contrário, estaríamos punindo pessoas sem a devida apuração dos fatos, o que vai contra o princípio da presunção de inocência”, ressalta.
Thiago Santana Lira também defende que o inadimplemento tributário, por si só, não deve ser criminalizado sem uma análise mais profunda das condições que levaram ao não pagamento. Ele destaca que, muitas vezes, o inadimplemento ocorre devido a crises econômicas e setoriais, que forçam o empresário a priorizar outras obrigações, como o pagamento de salários dos funcionários.
“Penalizar o empresário que, diante de uma crise, opta por manter a empresa funcionando e garantir o emprego de seus colaboradores, ao invés de pagar tributos, é uma distorção que precisa ser corrigida”, aponta.
Para ele, essa penalização extrapola os limites do que é razoável e proporcional, tornando-se uma ferramenta coercitiva de arrecadação para o fisco. “O mero inadimplemento tributário sem dolo não pode ser tratado como crime contra a ordem tributária, pois isso violaria não só os princípios do devido processo legal e da livre iniciativa econômica, mas também o próprio equilíbrio que deve existir entre o fisco e o contribuinte”, conclui.
Assim, a criminalização do inadimplemento tributário é uma questão que precisa ser tratada com extrema cautela. Para o sócio da Barroso Advogados Associados Santana Lira, é essencial que a análise da conduta do contribuinte seja feita de forma criteriosa, levando em conta as circunstâncias do caso concreto e as condições que levaram ao inadimplemento. “A responsabilidade penal não pode ser presumida, deve ser provada, e isso requer um processo justo, que busque a verdade real e que respeite os direitos fundamentais dos acusados”, finaliza.
O debate sobre a linha tênue entre a obrigação tributária e a criminalização da conduta dos sócios é complexo e exige uma abordagem equilibrada, que considere tanto os interesses do fisco quanto os direitos dos contribuintes.
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Paulo Fabrício Ucelli
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