A seletividade alimentar não é uma condição, é um sintoma que faz parte de um guarda-chuva maior chamado = dificuldades alimentares e é caracterizada por recusa alimentar, pouco apetite e desinteresse pelo alimento. É um comportamento típico da fase pré-escolar, mas, quando presente em ambientes familiares desfavoráveis, pode acentuar-se e permanecer até a adolescência e alguns casos durante a fase adulta.
O que é muitas vezes é relatado como dificuldade para aceitar alimentos pode ser apenas a ponta do iceberg de outros fatores como: traumas, dor, transtorno de processamento sensorial, transtorno do espectro autista, alergias alimentares, disfunções digestivas e carências nutricionais. Crianças com seletividade alimentar são classificadas em três categorias:
Apetite limitado: ocorre redução na quantidade da ingestão dos alimentos. Variam desde as que estão comendo adequadamente, (e que existe percepção errônea dos pais), até as com doença orgânica evidente.
Ingestão seletiva: as crianças que são consideradas seletivas variam desde aquelas que estão se alimentando adequadamente para seu estágio de desenvolvimento (percepção errônea) até aversões sensoriais relacionadas a doenças orgânicas.
Fobia alimentar: qualquer experiência intensamente aversiva relacionada à alimentação pode causar medo e recusa alimentar.
“A seletividade é marcada por recusa consistente de alimentos específicos, que têm um sabor, textura, cheiro ou aparência particulares. Na maioria das vezes apresenta associação com algumas alterações sensoriais tais como: sensibilidade a ruídos ou dificuldades com materiais que causam sensação de sujeira nas mãos, pés ou outra parte do corpo. São crianças com dificuldade para pegar no alimento, manusear tintas, massa de modelar, argila, pisar na areia ou grama, dentre outros objetos com variadas texturas”, detalha Marina Guedes, nutricionista, chef de cozinha e professora na pós-graduação na Faculdade UNIGUAÇU.
A prevenção da seletividade alimentar inicia-se no preparo para a gestação, na alimentação materna no período pré-gestacional, durante a gravidez, na fase da lactação e na introdução de novos alimentos. O aleitamento materno exclusivo por seis meses e a inclusão da alimentação complementar após essa idade reduz as chances de a criança desenvolver comportamento alimentar seletivo na fase de dois a três anos.
“O líquido amniótico muda de sabor de acordo com o que a gestante se alimenta, a regra também vale para o leite materno. A alimentação deve ser variada para prevenir dificuldades alimentares no futuro”, pontua a nutricionista.
Para muitas mães o fato da criança não se alimentar direito gera preocupação e é difícil distinguir a diferença entre a recusa alimentar normal e quando é preocupante. A especialista explica que a neofobia é frequentemente confundida com a seletividade alimentar. Entretanto, é um comportamento normal que se inicia no final do primeiro ano de vida com um pico entre 18 e 24 meses e se resolve naturalmente. Muitas vezes as crianças apenas aceitam os novos alimentos após repetidas exposições.
Diversos aspectos estão interligados e são as causas da seletividade tão comum em crianças que apresentam transtorno de espectro autista. Aspectos comportamentais como a necessidade de ritualizar os comportamentos e a ansiedade, comuns entre as crianças TEA, tornam o momento das refeições muito desafiador.
Fatores sensoriais são um ponto importante. Crianças com TEA frequentemente têm hipersensibilidades ou hipossensibilidades sensoriais. Isso pode afetar sua percepção de texturas, sabores e odores dos alimentos. As sensibilidades sensoriais podem levar à recusa de certos alimentos devido à sua textura, temperatura ou sabor.
Aspectos gastrointestinais que podem levar a deficiências nutricionais também devem ser considerados, uma vez que afetam o paladar e causam problemas gastrointestinais, como constipação ou diarreia crônica. Isso pode tornar a alimentação desconfortável e desagradável.
A dificuldade no processamento sensorial ou transtorno do processamento sensorial é uma condição neurológica que afeta a forma como o sistema nervoso interpreta os estímulos sensoriais como toque, som, luz, cheiro, gosto, equilíbrio, propriocepção (consciência da posição do corpo) e interocepção (capacidade do cérebro de sentir as sensações internas, como fome e sede).
“Pode ser bem desafiadora a alimentação de crianças com tal transtorno. Após o diagnóstico da seletividade é interessante realizar o tratamento com uma equipe multidisciplinar e contar com o auxílio de um terapeuta ocupacional. Na parte nutricional a terapia alimentar pode ajudar muito e é uma opção que une o lúdico com o sensorial”, completa Guedes.
A Terapia Ocupacional é uma área da saúde que visa auxiliar no cotidiano das pessoas, avaliando o desempenho ocupacional em áreas de autocuidado, trabalho, lazer, capacidades cognitivas, sensoriais, motoras e sociais, melhorando o dia a dia de seus pacientes ao possibilitar meios para que realizem atividades cotidianas de maneira autônoma. Através de atividades de exploração e vivência sensorial serão buscadas respostas adaptativas mais complexas e comportamentos sociais e emocionais mais adequados. O profissional faz uma análise do que a criança deveria realizar ou se tem algum tipo de dificuldade, isto de acordo com sua faixa etária e respeitando os marcos de desenvolvimento infantil. Estas condições podem ser cognitivas, sensoriais, motoras ou até mesmo sociais.
A abordagem vai além dos atendimentos, as orientações à família são importantes para o estabelecimento de metas e implementação de rotina durante a alimentação. “A criança precisa de aproximação gradativamente aos alimentos, sem forçar para evitar uma aversão alimentar. Lembrando que a terapia não começa pela boca, devemos trabalhar todos os sistemas sensoriais, olfativos, visuais e táteis. O tratamento conta com seis etapas que requerem comprometimento e paciência: tolerar, interagir com o alimento, cheirar, tocar, provar e comer”, orienta Andreia Vogelmann, professora no curso de Terapia Ocupacional na Faculdade UNIGUAÇU.
A terapeuta Andreia elaborou algumas dicas para tornar o momento da alimentação mais tranquila e prazerosa:
A família é a uma peça fundamental para o sucesso do tratamento;
Criar uma rotina alimentar com horários fixos;
Aprender a diferenciar as alterações de caráter comportamentais e sensoriais diante as questões alimentares;
Durante a alimentação da família, a única interação necessária que a criança precisa é do alimento e o prato, ou seja, é importante reduzir sons e estímulos visuais (TV, tablet, celular);
Realizar brincadeiras que envolvam alimentos, por exemplo, pinturas, usar figuras, preparar comida para um bichinho de pelúcia ou boneco, fazer de conta que todos provam, cortam e descascam o alimento.
Durante a alimentação, apresentar o alimento que será introduzido na rotina alimentar mesmo que criança não coma, é importante deixar o alimento em um prato ao lado;
Apresentar o alimento em diferentes formas, cozida, frita, molho;
Participação na cozinha, durante a preparação do alimento ir relatando como a comida está sendo feita, a criança pode auxiliar a pôr a mesa com utensílios que não apresentem riscos;
Talheres adequados e pratos divertidos;
Quando ofertar um novo alimento, é preciso tolerar visualmente, inicie uma interação, cheirando, tocando, dar um beijinho, lamber e posteriormente experimentar;
A postura é muito importante durante o processo alimentar, os membros devem estar alinhados para maior estabilidade ao comer.
A nutricionista Marina comenta que a terapia alimentar é uma forma de tratamento fundamental para as crianças com seletividade. Três estratégias que devem ser utilizadas na terapia:
Food Chaining: é uma técnica que envolve a identificação de alimentos semelhantes aos preferidos pela criança e, gradualmente, introduzir novos alimentos com base nessas semelhanças. Como por exemplo, caso a criança só consuma fruta em puré, a terapeuta trabalha a introdução desta fruta em preparações como bolos, até chegar na fruta in natura.
Exposição gradual: envolve a apresentação progressiva de novos alimentos à criança em um ambiente livre de pressão. A criança é encorajada a explorar, tocar e sentir o alimento antes de ser solicitada a prová-lo.
Terapia sensorial: ajuda crianças com seletividade alimentar a se acostumarem com diferentes texturas, temperaturas e sensações associadas à comida.
A seletividade alimentar se torna um transtorno quando impacta o desenvolvimento nutricional e físico da criança, passa a ser um grande problema que pode atrapalhar o desenvolvimento cognitivo. Os riscos associados às dificuldades alimentares que podem trazer impacto negativo para as crianças são: baixo peso, retardo no crescimento, alterações cognitivas, constipação crônica e fome oculta (deficiências nutricionais).
A ingestão altamente seletiva pode levar a privação de consumo de nutrientes essenciais ao crescimento e desenvolvimento como vitaminas A, E, D, C, minerais como zinco, ferro e consumo proteico. “Entretanto, as crianças seletivas costumam ter peso e altura normais, pois existe uma tendência familiar a ofertar os alimentos da preferência da criança em excesso para suprir a baixa ingesta, nestes casos muito cuidado deve ser tomado quanto às deficiências nutricionais. A criança seletiva pode até apresentar obesidade e estar ao mesmo tempo desnutrida”, alerta a nutricionista.
Existem alguns passos que as famílias podem seguir para auxiliar a criança que come mal:
Evitar distrações durante os horários das refeições;
Manter uma atitude neutra e agradável durante toda a refeição;
Limitar a duração da refeição (20-30 minutos) – 4 a 6 refeições/lanches por dia com apenas água nos intervalos;
Servir alimentos apropriados para a idade;
Introdução sistemática de novos alimentos (até 8-15 vezes);
Estimular a autoalimentação;
Tolerar “bagunças” apropriadas para a idade;
Aos pais: ter expectativas reais quanto as porções indicadas para cada faixa etária e ser o exemplo consumindo frutas e vegetais;
Comer em família onde todos se alimentam juntos e do mesmo alimento, tornando o momento da refeição uma experiência prazerosa.
Adultos também podem sofrer com a seletividade alimentar, principalmente se elas forem resultado de alguma fobia não tratada. A seletividade alimentar em adultos pode envolver aversão a certos alimentos ou grupos de alimentos, preferências alimentares restritas e uma relutância em experimentar novos alimentos, podem impactar negativamente a qualidade da dieta e a ingestão de nutrientes essenciais levando a deficiências nutricionais, sobrepeso e/ou obesidade.